O livro do Génesis (c.4) relata que Adão e Eva geraram dois filhos, Caim (agricultor) e Abel (pastor). Ambos eram muito religiosos, oferecendo a Deus os frutos do seu trabalho: Caim, os produtos do campo, Abel, as primeiras crias do rebanho. Mas... a Deus só agradava a oferenda de Abel, desconhecendo-se a razão da preferência e o modo como Caim tomou conhecimento dessa discriminação, só se sabendo da amargura de Caim pela atitude divina. Então, Deus dirigiu-se a Caim (Gn 4,7), mas este não quis escutar Deus e começou a alimentar o ódio contra o seu irmão Abel, até que um dia o convidou para ir até ao campo, onde o atacou e matou.
Após um diálogo com Deus (Gn 4,10-12), Caim tomou consciência do que fizera e lançou um grito de profunda dor (Gn 4,13-14). Deus comoveu-se com o seu pranto e prometeu vingá-lo sete vezes se alguém tentasse matá-lo, pondo-lhe um sinal de protecção e salvação para que quem o visse o reconhecesse e respeitasse. Caim saiu da terra que costumava cultivar e refugiou-se no deserto.
Ao ler este capítulo, deparamo-nos com um Caim desfigurado, diferente da imagem apresentada pela tradição, já que, por um lado, ele é menos mau e, por outro, não nos é dito que Abel fosse bom (repare-se que Abel tem um papel secundário nesta narração bíblica: não diz uma única palavra, só padece, Deus não lhe fala. A figura principal é Caim. Em hebraico, o nome Abel significa nulidade ou vazio, enquanto Caim quer dizer adquirir). O facto de Deus ter preferido as oferendas de um mais do que as do outro, não significa que um fosse bom e outro mau. Era um facto comum na antiguidade, onde o rei, faraó ou imperador podiam escolher as pessoas como bem entendessem, sem que isso significasse critérios de moralidade, injustiça, ou desprezo pelos outros.
Após um diálogo com Deus (Gn 4,10-12), Caim tomou consciência do que fizera e lançou um grito de profunda dor (Gn 4,13-14). Deus comoveu-se com o seu pranto e prometeu vingá-lo sete vezes se alguém tentasse matá-lo, pondo-lhe um sinal de protecção e salvação para que quem o visse o reconhecesse e respeitasse. Caim saiu da terra que costumava cultivar e refugiou-se no deserto.
Ao ler este capítulo, deparamo-nos com um Caim desfigurado, diferente da imagem apresentada pela tradição, já que, por um lado, ele é menos mau e, por outro, não nos é dito que Abel fosse bom (repare-se que Abel tem um papel secundário nesta narração bíblica: não diz uma única palavra, só padece, Deus não lhe fala. A figura principal é Caim. Em hebraico, o nome Abel significa nulidade ou vazio, enquanto Caim quer dizer adquirir). O facto de Deus ter preferido as oferendas de um mais do que as do outro, não significa que um fosse bom e outro mau. Era um facto comum na antiguidade, onde o rei, faraó ou imperador podiam escolher as pessoas como bem entendessem, sem que isso significasse critérios de moralidade, injustiça, ou desprezo pelos outros.
Mas o que mais chama a atenção é uma série de contradições e pormenores incoerentes com a História e o resto do relato, dos quais exemplificamos apenas três:
1) Se Caim e Abel são filhos dos primeiros humanos (que habitaram a terra há milhões de anos e eram recolectores, ou seja, viviam da caça, pesca e da recolha dos frutos espontâneos do solo) como é que podiam conhecer a pastorícia e a agricultura que só surgiram em 10.000 a.C. e 8.000 a.C., respectivamente?
2) Depois do seu crime, Caim afirma que o primeiro a encontrá-lo o matará (Gn. 4, 14), mas quem poderia matá-lo se não existia mais ninguém a não ser Adão e Eva?
3) No v. 17 refere-se que "Caim concebeu e deu à luz Henoc". Onde é que ele arranjou mulher? Alguns chegaram a supor que se tratasse de Eva, a sua própria mãe, pois nessa época o incesto não estava proibido.
Hoje, os estudos bíblicos ensinam que a história de Caim apresenta estas incoerências, porque passou por três etapas sucessivas até acabar no relato do Génesis.
a. No início era um conto popular, transmitido oralmente e independente do relato de Adão e Eva, onde se narrava a história do herói Caim, fundador da tribo dos caimitas, vizinhos dos israelitas. A história incluía também o seu casamento, talvez com alguma das muitas jovens pertencentes aos clãs que então habitavam o deserto e o nascimento do seu filho Henoc. Esta história seria contada pelos próprios caimitas, orgulhosos do seu fundador Caim.
b. Quando esta história chegou aos ouvidos dos israelitas, estes modificaram-na em vários aspectos. Os caimitas viviam em pleno deserto, dedicando-se à pilhagem de outras tribos e, por isso, os israelitas consideraram que era um castigo de Deus por algum delito cometido pelo seu fundador. Não sabiam qual era o delito, mas como os caimitas assolavam permanentemente as colheitas das tribos suas irmãs de raça, imaginaram que fosse um delito contra o seu irmão. Além disso, esses beduínos eram famosos pelas terríveis vinganças que perpetravam contra quem matava um dos seus membros, daí a referência que aparece no v. 15 e também é possível que a dita tribo apresentasse exteriormente algum sinal ou tatuagem. Nesta segunda etapa, a tradição hebraica transformou o herói dos caimitas num fratricida castigado por Deus a viver uma vida errante.
c. Na época do rei Salomão, a história passou a uma terceira etapa. O lavrador expulso da terra cultivável e condenado a errar para sempre, prestava-se para aprofundar a explicação sobre a presença do mal no mundo. Com alguns retoques, a história foi colocada a seguir ao relato de Adão e Eva, apesar das incoerências daí resultantes. Nessa época já se colocavam questões angustiosas como as da existência do mal e o motivo do sofrimento. O autor bíblico respondeu com a história de Adão e Eva: porque o homem desobedeceu a Deus, ao comer o fruto proibido, preferiu a sua própria vontade à do Criador e cortou relações com Ele. Ao acrescentar a história de Caim, condenado a uma vida penosa e dura, por faltar contra o seu irmão, completou o seu ensino, dizendo que o mal cresce no mundo pelos delitos contra os outros homens.
Assim, trata-se do segundo pecado original. O relato de Adão e Eva (Gn 2 e 3) tinha quatro partes: ordem de Deus (não comer o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal; Gn2,17), desobediência do homem (comeu-o; Gn 3,6), castigo de Deus (Gn 3,14) e esperança de salvação (Deus fez a Adão e Eva túnicas de peles e vestiu-os; Gn 3,21). Também o relato de Caim e Abel apresenta as mesmas partes: ordem de Deus (se procederes bem..., se procederes mal...; Gn 4,7), desobediência do homem (Caim mata o irmão; Gn 4,8b), castigo de Deus ("serás amaldiçoado pela terra..."; Gn 4,11), esperança de salvação (o Senhor marcou-o com um sinal...; Gn 4,15b). Quer dizer, o autor pretende propor o mesmo tema que o relato de Adão e Eva: a origem do mal, mas agora com uma resposta diferente. No primeiro a explicação do mal no mundo dependia das relações do homem com Deus, no segundo depende da ruptura de relações com o irmão.
A lição de Caim é revolucionária para a sua época e pretende deixar claro que o crime contra o irmão é tão grave quanto o crime contra Deus.
(Adaptado de Ariel Álvarez Valdés, com tradução de Lopes Morgado, Revista Bíblica, nº 310)
(Adaptado de Ariel Álvarez Valdés, com tradução de Lopes Morgado, Revista Bíblica, nº 310)